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segunda-feira, 2 de julho de 2012

53)-Final: Um gole de Estricnina (Crônica)



A minha cama estava mais macia naquele dia. Mesmo assim me levantei, ainda era muito cedo, abri devagar a porta do meu quarto e caminhei pelo corredor, a casa estava em silêncio, todos estavam dormindo, me dirigi à cozinha para tomar um copo d’água – detesto beber água, mas naquele dia eu resolvi tomar um pouco. Meu coração batia forte, eu estava com muito medo. Puxei uma cadeira, sentei e por um longo período fiquei pensando na viagem que eu faria. Egoísta! Julguei-me assim. Partir e deixar quem me ama, sacrificar-se por um alguém, por quê? Eu a amava e ainda a amo... Mas e os outros? Na nossa história não tinha outros. Era somente eu e ela.
Chovia muito naquele dia. As gotas batiam com força na janela da cozinha, levantei da cadeira, dirigi-me até a janela e dali mesmo eu fiquei observando as plantas saciando a sua sede com toda aquela água que caia do céu enquanto me alimentava de agonia. Ainda pensativa voltei para o meu quarto, tranquei a porta e sentei-me diante do espelho, me admirava pela última vez. Naquele dia eu acordei mais bonita. Minha pele estava mais rosada, enquanto eu me reparava ia escovando os cabelos, depois limpei os meus olhos com algodão, minha boca exigia um batom vermelho rosado – nunca fui muito vaidosa, mas aquele seria o último momento que eu estaria acompanhada dos meus “eus”. Depois... Bem, depois eu não saberia se eles ainda iriam querer continuar comigo. Foi engraçado imaginar-me separada dos meus “eus”.
Fechei os meus olhos e em meio a um silêncio mórbido eu me perguntava; "Como seria se nós tivéssemos percorrido todas as estradas tortuosas?" "Como seria se nós tivéssemos ficado cegas por conta das luzes que nos levam até essas estradas?" Em meio a estes conflitos eu apanhei a única coisa capaz de me trazer "o mundo perfeito", os meus fones de ouvido e o meu iphone, neles surgiam as canções que me diziam que eu era apenas eu, não tão boa, mas alguém que seria capaz de dedicar os mais sinceros sentimentos. Eu estava encostada na cabeceira da cama ouvindo a voz de Noel Gallagher cantando Wonderwall só para mim, eu não parava de pensar na Luana, não parava de pensar na minha partida, não parava de pensar o que iriam dizer de mim por aí, não parava de pensar que ninguém havia sentido o mesmo que eu senti pela minha amada naquela vida, ainda havia muitas coisas que eu queria dizer à minha Princesa, mas eu não sabia como... Depois que eu descobri o Amor na boca de Luana eu o tive como protetor, acreditei que ele viria me salvar e no final de tudo...    
Tirei os fones de ouvido, sentei diante da escrivaninha, retirei da gaveta uma folha de papel e uma caneta e escrevi uma carta à Luana expressando os meus últimos sentimentos, aquilo que eu deveria ter dito a ela, mas não sabia como. Deixei as minhas escritas sobre a mesa, os meus dois CDs das minhas bandas favoritas; Oasis e Nirvana e a caneta que havia transformado em palavras as últimas batidas do meu coração. Voltei pra cama, passei levemente as mãos sobre ela e a senti mais macia, me deitei novamente, fixei os olhos no teto, ainda estava chovendo muito, ouvi as gotas baterem na janela e o fone de ouvido soando alguma canção do Gallagher, que agora cantava só, naquele instante eu não estava envolvida em suas letras apenas imaginava a minha paixão perto de mim, tudo parecia tão real...
Ainda deitada levei preguiçosamente a mão até a gaveta da minha escrivaninha tirei um frasco de perfume que dentro havia um líquido a base de estricnina. Eu havia preparado tempos antes, coloquei-o no frasco de perfume para que ninguém viesse desconfiar da decisão que eu estava julgando já algum tempo, só estava aguardando a (minha) razão dar o veredicto final. Era o momento de eu partir, deixar o amor trilhar o seu caminho, abandonar os meus “eus”, acovardar-me, deixar as saudades com os meus familiares, partir num gole de estricnina, esperar um instante e sentir pouco a pouco os meus órgãos falecerem, assim, poderia dançar nos palcos de um lugar incerto, acompanhado da solidão, a música foi a única coisa que consegui levar comigo, ainda a tenho nos meus ouvidos.
Vi a minha mãe bater na porta, mas eu não podia atender, eu não estava mais ali, não os ouvia mais e o meu corpo era apenas matéria sobre a cama que naquele dia estava mais macia. Desesperadamente o meu pai arrombava a porta até todos adentrarem no quarto e me verem ali, paralisada e com os olhos ainda abertos, porém, sem vida. Derramaram lágrimas, mas eu não podia mais ouvir os seus prantos.  Aquele foi um dia trágico para todos que me amavam. Até os meus ursos, que foram espectadores da minha morte, lamentaram a minha silenciosa partida.
Você, que me lê neste momento, já sabe o meu nome. Cometi suicídio aos quinze anos de idade, escrevo este texto póstumo para contar a vocês como eu descobri o amor e como eu decidi morrer por ele. Sou lésbica, fui apaixonada pela Luana que me esqueceu logo após a minha morte, fomos amigas e amantes, nunca tivemos vergonha uma da outra, estávamos sempre de mãos dadas. Os meus pais não sabiam da história que escrevíamos juntas – ou pelo menos fingiam que não sabiam – muitos eram os rumores sobre a minha relação com Luana, mas não ligávamos. Eu acreditei que eu poderia ser feliz até ela decidir que deveríamos dar-nos um tempo antes que os seus pais a expulsassem de casa. Não sei... creio que nas páginas do romance de Luana a Amanda era o amor ideal e eu havia me tornado uma apaixonada terrivelmente chata e cheia de devaneios, aliás, as rosas da Amanda não deixaram Luana sem teto. Eu era o problema. Na Igreja os olhares desconfiados me miravam a todo instante, mas nos ombros da minha mãe eu me sentia protegida, aliás, ela lutou para que a minha carta permanecesse no mesmo lugar todos esses anos – ela sabia de tudo, sempre soube...
Não sei como eu estaria se eu estivesse aí, do lado da vida. Quem eu teria me tornado? Será que eu encontraria os meus desejos em outras pessoas? Não sei, decidi não viver... Apenas sei que a morte fez o meu tempo parar. No meu quarto não dei um gole apenas na estricnina, mas também, dei um último gole de monotonia e parti carregando na mão direita um frasco vazio e na mão esquerda um lenço impregnado com o perfume de Luana que me fez senti-la pela última vez. 


[Fernando de Souza Júnior]
2 de Julho de 2012.

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